DITINHO JOANA
artista da vida, expressão do seu povo
Por Hermes Rodrigues Nery
Foto: FLIP COLOR - Agência Digital
“Quando cai uma árvore, o Quim Costa me avisa; assim, eu dou vida ao que estava morto.” 1
Entre 2002 e 2003, já residindo em São Bento do Sapucaí, fui morar no Bairro do Quilombo, tornando-me vizinho do artista-maior e líder máximo da comunidade: o artesão Ditinho Joana (nascido aos 12 de março de 1945), entalhador de madeiras nobres, pessoa cordata, exímio contador de causos, pai de família e homem de Igreja, conhecido por seus cânticos gregorianos e de recomendação das almas; notável por sua sabedoria salomônica, como conselheiro nato. Ofereceu-me em sua casa, seu delicioso tareco (ou orelha de padre), um bolinho cozido com farinha de trigo e água, acompanhado do café caboclo.
Depois o Pe. Leising levou-me para ser coordenador de programação do Acampamento Paiol Grande, com a exigência de morar lá, e com o seu retorno ao Rio de Janeiro, voltei à cidade, e posteriormente, como vereador, presidente da Câmara Municipal convidei artistas, poetas, compositores, artesãos e violeiros, para abrir as sessões da Câmara, apresentações estas que estarão reunidas no livro Viva o Povo Sambentista! Dentre eles, certamente o maior de todos, mestre Ditinho Joana veio entoar o seu cântico do Mutirão no plenário da Câmara.
“Me mandaram eu cantar / pensando que eu não sabia / Eu não sou como a cigarra / que cantando passa o dia” (Canto do Mutirão – Ditinho Joana)2
Esteve também dirigindo e atuando numa peça teatral na sessão solene itinerante que fizemos na praça do Quilombo, em agosto de 2009, e ainda teve uso da palavra na sessão de promulgação da reforma da Lei Orgânica do Município. Por aí se vê sua presença imprescindível nos acontecimentos, reuniões, encontros e eventos públicos da cidade. Recebeu ainda uma Moção de congratulações pelo conjunto do seu trabalho realizado. E antes de deixar a presidência, disse a Ditinho que tínhamos que viabilizar uma melhor organização de informações do que ele já produzira, e fizemos então a gravação em vídeo de uma entrevista, no atelier de sua casa e no jardim da Câmara Municipal, dando assim uma modesta contribuição na divulgação daquele que é certamente o maior dos artistas sambentistas, que há de permanecer uma estrela alvissareira a melhor representar a alma de seu povo.
Esculpir somente em madeira nobre
Do seu atelier, na varanda de sua casa, no bairro do Quilombo, se tem a vista da praça e a igreja de Nossa Senhora da Conceição, construída em 1905. É ali que Ditinho Joana recebe os turistas e apreciadores de sua arte genial. A sua peça intitulada Mutirão, reproduz bem o sentimento do homem do campo, ligado por laços de parentesco e compadrio, que constrói seu cotidiano como quem faz da solidariedade um valor edificante.
Ditinho Joana, “salutar na alegria séria”3, encantou o Brasil no programa do Jô Soares, sendo aplaudido várias vezes a cada causo que contava, e também cantava, com tal desenvoltura, revelando o artista de talento múltiplo, de liderança natural marcante e cativante.
Até os 29 anos, trabalhou na roça, como lavrador. Em meio a labuta diária, certa vez, encontrou uma raiz de formato estranho, parecida com um animal. Ele a levou para casa e passou a indagar: E então? O que lhe parece? Uns diziam que era girafa, cavalo ou cachorro, para sua mãe, lembrava um gato. Foi então que ele pegou a ferramenta e deu forma aos seus primeiros trabalhos em madeira. Com o tempo a raiz foi devorada por cupins, daí que, observando a natureza, Ditinho Joana resolveu esculpir somente em madeira nobre, especialmente no jacarandá, para durar mais, e a sua obra não ser vítima dos cupins.
O genuíno artista popular
A primeira escultura, feita de só um bloco de madeira, é significativa do seu referencial cultural, representando um índio e um padre. Enquanto esculpia, sua mãe, segurava uma lamparina para clarear, pois não havia luz elétrica na casa. Dali por diante, nas horas vagas, à noite, Ditinho Joana foi trabalhando, até o dia em que o guia turístico Laércio Cardoso de Carvalho, de São Paulo, o descobriu e entusiasmado com o que viu, o levou para sua primeira exposição na capital paulista, na avenida Europa. Em seguida, apresentou-o à pintora Iracema Arditi, que divulgou a sua arte para outros espaços. Naquele mesmo ano, o próprio Pietro Maria Bardi confirmou o valor da sua obra, dizendo-lhe pessoalmente: “Você é um grande escultor! Um dia entenderá o que estou lhe dizendo”.
Em São Bento do Sapucaí, começou a expor suas primeiras obras no Mercado Municipal da cidade. A partir de então, vieram muitas peças originais. Seu nome se espalhou pelo Brasil afora, impondo-se como o genuíno artista popular, que soube aliar a excepcional intuição, com uma técnica própria capaz de dar vida e expressões humanas de profundo realismo, registrando cenas de um cotidiano rural que ele conheceu com seus pais e avós, e que busca – através de sua arte – manter viva a tradição e identidade cultural da sua comunidade. Criando, assim, estilo próprio.
Ditinho Joana “traduz na madeira a 'vida do homem simples do campo'. São peças que representam um homem com sua enxada ao ombro, um casal e seus filhos ao redor do moinho, um sapateiro encurvado, martelando a sola de um calçado, enquanto tem nos pés um chinelo; ou cenas religiosas: um presépio, Sant'Ana tendo Maria sentada ao seu lado”4 . E ainda São José Operário, entre outros. Cada peça se reporta a um momento da vida rural do passado brasileiro, com as situações de familiaridade que enriqueciam o dia-a-dia do povo pobre, que trabalhava duro para o sustento diário, mas que também gostava de festa, (“pois na panela do pobre, tudo é tempêro”)5 de uma boa prosa, e que se reunia, muitas vezes, em mutirão, para atender alguma demanda comunitária.
Cenas da vida cotidiana: o menino levado nas costas pelo pai
Eugenia Sereno descreve o perfil do homem rural que Ditinho tão magnamente dá vida em sua obra:
“Homens de temperamento estiolado, cigarro de palha de milho na orelha, fatiota nova de brim branco, botinas penduradas num cajado e pinchando cusparadas no chão, carregam seus capiaus no cortejo, mantimento no cargueiro ou em garupa de mula bem arreada e mais crioulas e caboclas de vestido até ao pé, todos muito multicoloridos: verde musgo-de-pau, vermelho-pena-de-jaó, amarelo-peito-de-canindé, azulão de arara-araúna” 6
Ele próprio explicou ao Jô Soares que a botinha de madeira se tornou uma peça símbolo, por representar o homem do campo e também do trabalho. Daí que emergem de suas mãos talentosas, o menino levando o almoço para o pai que trabalha na roça, brincando com uma roda de carrinho, o sapateiro que proseia enquanto prega a sola no sapato, o próprio Ditinho Joana, quando criança, sendo levado, nas costas do pai, a lavadeira levando a trouxa de roupa na cabeça, a mulher peneirando o café, o caipira tocando a viola, o casal de lavradores trabalhando juntos, homens serrando a madeira, o lenhador levando as toras nas costas, o avô plantando árvore com o neto, o boticário levando o remédio ao paciente. “No tempo do meu avô – explicou-me Ditinho - quando chamava o doutor, a conversa dele valia mais que o remédio!”
Com a peça de madeira no colo e um formão simples, uma boa peça leva quarenta dias para ficar pronta. Muitas delas estão hoje espalhadas em museus, em casas de quem preza um bom trabalho, e em conceituadas galerias de arte.
Os últimos tipos de uma sociedade em mutação
Anamaria do Val, em reportagem publicada na revista Globo Rural explica:
“Ditinho grava na madeira ofícios de um outro tempo: o sapateiro remendão batendo pregos na botina surrada, o homem 'temperando' o remédio, como ele mesmo diz, o velho carregando lenha. Todos são feitos com o cerne de madeiras de lei, como jacarandá e peroba, sem emendas. Primeiro, o artista dá forma, com o machado, ao conjunto todo, faz um esboço da cena a ser esculpida. Depois vai trabalhando um pouco em cada figura. Peças como A Família no Moinho, esculpida num bloco com 60 x 70 x 50 centímetros, exigem sua dedicação integral por 10 a 15 dias. Embora já tenha sido presenteado com ferramentas especiais para esculpir madeira, prefere suas velhas conhecidas: 'Tenho mais certeza com a machadinha do que com um serrote; gosto da grosa espinhuda para dar acabamento. Quando uso o jacarandá paulista, que é claro, escureço algumas partes do trabalho com extrato de nogueira, depois encero'”.7
Na primeira reportagem a respeito de sua obra, a Folha de São Paulo destacou que:
“Os trabalhos de Ditinho também expressam os últimos tipos de uma sociedade em mutação. Como o “tirador de cipó”, um homem que conhece como ninguém esta espécie de madeira que deve ser retirada do mato com uma técnica própria, 'porque tem cipó que quebra e o que não quebra' – explica Ditinho. O 'homem do tempo' é um personagem folclórico de São Bento do Sapucaí: ele só vai à cidade levando um guarda-chuva e mesmo quando está fazendo sol olha para o céu para ver se não vai chover. 'O homem voltando das compras' faz algo impossível na cidade grande – descansa debaixo de uma árvore, enquanto tira o sapato apertado, só usado em dia de ir à cidade. O 'vendedor de banana' demonstra a situação de penúria para o bóia-fria quando adoece: não podendo exercer um trabalho pesado é obrigado a ser vendedor ambulante para poder ainda sobreviver. O 'frei' meditador está com o dedo indicador na testa (à maneira da escultura 'O Pensador', de Rodin), porque segundo Ditinho, ele está pensando 'o que é que eu vou dizer para os meus fiéis?'”8
No catálogo de uma exposição em São Paulo, ocorrida em 1994, podemos ler:
“Benedito da Silva Santos é o nome de Ditinho Joana, ex-lavrador do alto Vale do Rio Sapucaí Mirim na Serra da Mantiqueira, que abandonou enxada e foice por ferramentas de esculpir. (...) Ditinho Joana vive no Quilombo, comunidade rural no município paulista de São Bento do Sapucaí. Iniciou seu trabalho de escultor em 1974, procurando dar forma a um pedaço de raiz que ele próprio encontrou ao capinar. (...) usa seu talento para registrar com muita sensibilidade uma parcela representativa do povo brasileiro, ainda bastante desconhecida: a comunidade rural. (...) Profundo conhecedor dos antigos aspectos e costumes da vida rural, transmite aos seus trabalhos a realidade do homem do campo, deixando neles o testemunho para as futuras gerações de um passado que, embora recente, é pouco conhecido nos nossos dias. (...) As figuras de sua terra, que surgem em seus trabalhos, interpretam momentos de pura simplicidade com o peso da tragédia, amor, dor e esperança.”9
“Tudo afinal é trabalhoso na vida e tem seu quê!”10
Auto-didata e intuitivo, mas que domina a técnica de dar vida à madeira, com formas expressivas da verdadeira arte popular, Ditinho Joana sabe talhar, dar o traço certo, desde o mais miúdo detalhe. “Criei na minha idéia que podia pegar qualquer pedaço de madeira e transformar no que eu quisesse”.11 Com esta convicção, que lembra o verso ousado de Castro Alves: “sinto em mim o borbulhar do gênio!”12, é que Ditinho une arte e vida, com maestria singular. Uma ousadia não intempestiva, mas de amor, paciência e humildade. Na entrevista com o Jô Soares, foi mestre Ditinho quem deu o tom da conversa: levantou-se, cantou, dançou, contou causos, e tudo isso com um humor especialíssimo e elegância. Lá, o artista era ele, representante legítimo da cultura sambentista. “Que maravilha, que maravilha!”13, exclamou Jô, entre os aplausos efusivos da platéia.
Artista popular porque é capaz de exprimir “em peças únicas (não seriadas), espontânea e artisticamente, a sua realidade e sua imaginação, com função normalmente decorativa ou ornamental, sem ter tido instrução formal para tanto, em oposição aos artistas plásticos que estudam para esse fim”14 Mas seu “entalhe figurativo em madeira”15 traduz mais do que técnica, mas a alma de um povo que trabalha, que é valente, e que transborda generosidade, daí ser tão festivo.
“Esse homem baixo, de semblante sério e olhar profundo, faz parte de uma minoria privilegiada de gente que se considera muito feliz, embora sua vida tenha sido de muito trabalho!”16 Feliz porque responde a sua vocação com fidelidade, tem amor a sua gente, e um olhar universal para os dramas e alegrias do ser humano. Sabe também que a realidade por si só não basta, daí sua inventividade não apenas como artista, mas como pessoa humana benevolente, que acolhe cada visitante como quem conhece a vida, sabe dos seus impasses, mas que não empaca; pelo contrário, como a boneca Emília, das talhadas na madeira e da boa conversa, ressoa a fórmula mágica do pirlimpimpim, e o faz-de-conta se torna realidade. É desta confiança em “pegar qualquer pedaço de madeira e transformar no que eu quisesse”17, que Ditinho Joana foi construindo sua história de vida, como uma estrela de especial grandeza. Não é a toa que o seu povo já o elegeu há muito tempo para um mandato vitalício, como rei do Quilombo.
O rei do Quilombo
Em estudo acadêmico, o antropólogo da USP, Heitor Frúgoli Júnior, destaca que:
“Em certos bairros rurais, como o Quilombo (aproximadamente 500 habitantes), outras tradições também têm peso nos arranjos societários. Segundo Ditinho Joana, conhecido artesão local, o povoado foi inicialmente formado por escravos, no século XIX, e depois por negros descendentes de escravos que aí chegaram por volta de 40 anos atrás, vindos de Gonçalves (MG). Os últimos estabeleceram vínculos de parentesco com a população local e renovaram suas tradições afro-brasileiras, entre as quais permanecem ainda a congada e o canto da 'recomenda das almas'.
Nesse e em outros bairros rurais, verificam-se fortes redes de parentesco, com vários casamentos entre as mesmas famílias. Numa rápida reconstituição da rede de parentesco do próprio Ditinho Joana, foi possível constatar que: (a) seus dois avôs eram irmãos; b) seus pais eram primos de primeiro grau; c) após enviuvar, Ditinho casou-se pouco tempo depois com uma irmã mais nova da primeira esposa – tendo, como comentou jocosamente, “economizando sogra”; d) um de seus irmãos casou-se também com uma prima de primeiro grau; e) o sobrenome Joana não faz parte do seu nome de batismo (Benedito Silva Santos), tendo sido transmitido desde sua bisavó – Maria Joana de Jesus (Nhá Joana) – filha de uma escrava com seu senhor, que depois teria recebido oito alqueires de terra do pai, mantendo-se, assim, uma referência de 'matrilinearidade' ou 'parentesco cognático' através de gerações; f) ainda que alguns se casem com pessoas de outras cidades e permaneçam no Quilombo ou então se mudem, ao menos quanto à geração dos irmãos, dos filhos e mesmo netos de Ditinho, a maioria estabeleceu matrimônio com pessoas do próprio bairro; g) não é a toa que Ditinho Joana se refira algumas vezes ao local como 'família Quilombo'”18
Seu envolvimento com a comunidade – que ele vê como extensão natural da família – faz contraponto à resiste à cultura individualista do nosso tempo. O rei do Quilombo o é, porque tem comprometimento com esta comunidade que ajuda a se manter, mais do que a sobrevivência material – que é muito difícil, porque uma comunidade pobre – mas essencialmente a cultura do seu povo, a sua identidade e alma. Nele, pessoa e comunidade estão indissociavelmente unidos, e só assim é possível a alegria de viver, porque – conforme a tradição católica – a pessoa se perde ou se salva junto com quem assume um destino comum. Daí o sentido e o valor do caminhar e se construir juntos, tão expressa em uma de suas obras mais tocantes: O mutirão (52 x 65cm), em que vemos um conjunto de trabalhadores, um dando apoio ao outro, cada um fazendo a sua parte, pelo bem de todos.
A alma do seu povo
Ditinho Joana é muito mais que o artista que tão bem sintetiza a identidade dos sambentistas, mas de modo muito especial a do bairro do Quilombo. Nele encontramos todos os atributos e melhores qualidades da sua gente: a hospitalidade, o trabalho honesto, a mansidão, o gosto pelas festas, pela boa prosa, a religiosidade, a criatividade artística, “a perseverança no ideal”19 etc. Ele é, sem dúvida, a alma do seu povo.
Sobre a sua comunidade, lemos em um trabalho em nível de dissertação de Mestrado do Departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas:
“De acordo com Ditinho Joana (um de seus moradores), o bairro possui aproximadamente cento e vinte casas e quinhentos habitantes (1999). Concentrados a princípio ao redor da capela, no terreno da Santa e, mais tarde, nos sítios loteados ao redor dele – concentrou-se no Quilombo uma população considerável de pequenos agricultores não proprietários que, num segundo momento, acabaram se empregando ora na construção civil, ora no comércio, quando não foram empregados como 'camaradas da prefeitura'. No povoado vivem ainda alguns agricultores aposentados, e muitas das mulheres do lugar empregam-se como domésticas ou como operárias em pequenas indústrias das cidades vizinhas. Apesar desta diversificação, entretanto, a maioria dos moradores do bairro ainda lida com lavoura. Dentre estes, mais ou menos a metade é meeira ou arrendatária, alguns trabalham como ‘camaradas’ e os outros são pequenos proprietários. De um modo geral, entretanto, a população do bairro é muito pobre, contrastando com a população do bairro vizinho: o Paiol Grande.”20
“Não posso deixar o Quilombo”
Enraizado por inteiro no bairro do Quilombo, Ditinho é um daqueles cujo apreço mencionei em meu discurso de posse como presidente da Câmara Municipal, em janeiro de 2009: “Admiro muito os sambentistas natos que não se deixaram seduzir pelos apelos dos grandes centros urbanos e decidiram ficar aqui para ajudar essa comunidade a alcançar seu destino.”21
Ditinho conta, por exemplo, que quando fez sua primeira exposição individual, em São Paulo, em 1979, recebeu convite para residir na capital paulista, lhe davam até casa para morar, com a família. No ano seguinte, ao expor em Penápolis, recebeu novo convite nesse sentido. Mas “não posso deixar o Quilombo”22, afirmou. Com isso reforçou que sendo local, não deixou de ser universal, pois o que traduz em sua arte é uma humanidade que pertence a todos, em qualquer tempo e lugar. Mas que ele somente pode captar e atualizar, a partir do chão da sua realidade, que é o Quilombo.
De psicólogo a conselheiro, foi assim chamado numa reportagem do jornal Valeparaibano:
“No arraial do Quilombo, ele é um líder natural. Resolve querelas entre moradores, brigas de casais, aconselha os jovens e, de acordo com seus vizinhos, possui grande força espiritual. Personalidade impressionante e grande talento artístico, Benedito da Silva Santos, 42 anos, conhecido por Ditinho Joana, é, hoje, um dos responsáveis pela manutenção de boa parte das tradições do Quilombo. Além de liderar a comunidade, Ditinho Joana é também considerado o maior artista do Vale do Paraíba, com prêmios em exposições realizadas na França, Itália e Alemanha. Suas esculturas são feitas em madeira de lei, em uma só peça, e se destacam pela expressão do rosto e pela perfeição dos detalhes. Ele retrata com grande fidelidade as pessoas da roça e cenas típicas do interior paulista.
Caipira de físico miúdo, Ditinho Joana já foi definido como 'uma mistura cabocla de padre, psicólogo e conselheiro'. Sua trisavó foi uma das fundadoras do vilarejo Quilombo. Ali, portanto, nasceram e morreram seus ancestrais. 'Meu avô, meus antepassados não tiveram fotos, ficaram esquecidos pelo tempo. Meus trabalhos são uma maneira de lembrá-los. Por isso o passado do meu povo me inspira mais”.23
O sentido unitivo que dá sabor à vida
Ao falar de Ditinho Joana, quando ele expôs no Espaço Turístico da Secretaria de Esportes e Turismo, em São Paulo, em 1985, o jornal A Tribuna afirmou: “Até hoje as figuras humanas são seu tema preferido, executadas em um único bloco, isto é, sem encaixes ou colagens. O artista já participou com sucesso de diversas obras expostas no exterior”.24 Figuras humanas que expressam sentimentos vivos, de compaixão e serenidade, a humilíssima paciência, e também os de contentamentos, de cansaço e sofrimentos, de piedade, e de esperança.
A vida do povo no mundo rural de antigamente, bem como a do interior de hoje, é muito difícil: muito trabalho, baixos salários, e falta de investimentos que garantam os direitos sociais básicos. As personagens de Ditinho Joana estão inseridas no contexto ético do trabalho, para superar as deficiências cotidianas, e encontrar um sentido unitivo que dê sabor à vida. São homens e mulheres, crianças e idosos operantes, que afirmam este “conceito moral, mostrando a beleza do heroísmo, da virtude e do sacrifício pelas causas nobres”25, pois a própria sobrevivência honesta e também inventiva, só é possível com um heroísmo anônimo e cotidiano, de silêncios e esperas, de expectativas e sonhos, do passo a passo necessário para salvaguardar o essencial. Pois “como são simples os acontecimentos essenciais!” 26
Hoje, persiste a dificuldade de viver, pois muitos jovens não encontram inserção profissional no Município, muitos deles sendo forçados a estudar e trabalhar fora, agravando o desenraizamento comunitário, o isolamento, a indiferença, o individualismo, efeitos corrosivos da cultura consumista e descartável, que Ditinho Joana tenta combater, reavivando em sua arte o apelo por relacionamentos humanos e afetivos mais consistentes.
Isaura Aparecida Lima e Silva, historiadora de São Bento do Sapucaí reproduziu em um texto de sua lavra, mencionado no trabalho acadêmico de Maria Ester Pereira Fortes, o espírito e a têmpera do sambentista, que Ditinho Joana tão bem representa em sua arte-raiz:
O Alto Vale do Sapucaí era uma região solitária, onde predominou a criação de gado. Spix e Martius, no livro Viagem pelo Brasil traçaram o perfil dos habitantes dos sertões mineiros, dizendo que viviam de maneira muito simples e rude e eram criaturas da natureza, sem instrução e sem exigência. (...) Dizem os autores que eram, na maioria, descendentes de portugueses com índios,portugueses com negros e índios com negros. Do contato desse sertanejo solitário com os fazendeiros e escravos que aqui se estabeleceram formou-se o homem sambentista. (...) Os demais imigrantes só aparecem no final do século passado, em sua maioria, italianos. Cada um desses elementos transplantou-se com sua bagagem cultural, seus usos, costumes e crenças religiosas, que formaram a cultura sambentista tão distinta dentro do contexto geral. As condições geográficas, a distância e a falta de transporte e comunicação causaram o isolamento dos habitantes, e criou-se uma sociedade própria (...) Esse isolamento produziu o equilíbrio, costumes cristalizados, estabilidade e culto às tradições.(...) A sociedade sambentista sempre foi refratária a mudanças, apegada ao passado e às tradições de seus ancestrais. O que era uso ou costume a um século atrás continua, ou se quer que continue até hoje, quando estamos ás portas de um novo milênio. Aceitam as mudanças na sociedade com muita reserva e desconfiança... As pessoas mais velhas são as que menos viajam, as que mais resistem às mudanças, as de costumes cristalizados, apegadas ao passado...Porém encontramos pessoas relativamente jovens vivendo em função do ontem, recusando a aceitar o hoje com todas as suas mudanças sociais: são os saudosistas, que ainda sonham com a missa rezada em latim, as suntuosas coroações de Nossa Senhora, cercada de anjos com roupas brilhantes e asas brancas de penas de pato...Acompanham pela televisão as transformações do mundo, o avanço da ciência e da tecnologia como simples telespectadores, como se fosse um fato isolado e distante que não os afetasse em nada... As pessoas que vêm de fora, dos centros mais desenvolvidos, são vistas com certa reserva por causa do modo de agir mais liberal, das idéias mais avançadas e ficam um pouco isoladas até que se quebre o gelo ou ganhe a confiança da comunidade... Resumindo: grande parte dos sambentistas vive do passado, no passado e para o passado. Até parece que as montanhas que os cercam impedem-nos de viver o presente e encarar o futuro de frente...”27
“Os entendidos dizem que a minha arte tem valor” – contou-me Ditinho Joana, sentado em seu atelier, enquanto um gato preto espreguiça na entrada da porta, e comento: “Este não tem com o que se preocupar na vida!” Lembro-me de quando fui seu vizinho, e meus gatos entraram por uma fresta do bambual que dividia nossas residências, e comeram os seus pintinhos. Aquele episódio me fez conhecer sua natureza cordata, a de um verdadeiro diplomata, e com sabedoria encontrou uma solução para proteger seus pintinhos, sem eliminar os meus gatos.
A arte de Ditinho Joana tem valor não somente pela sua técnica do entalhe, que vai até o detalhe perfeito, mas especialmente pela pessoa que é Ditinho, pelo que ele representa de um ideal de humanidade que vai custando preservar, mas que na doçura de sua afabibilidade vamos tendo esperança de que seja possível essa mesma humanidade expressa em sua obra, seja durável como o jacarandá que ele escolhe para esculpir, porque
“No Quilombo ainda sobrevive um espírito de solidariedade, herança dos tempos em que nas terras da Santa tudo o que se plantava era propriedade comum. Hoje, cada família cuida do seu lote e Ditinho é tido como seu líder, a pessoa que se preocupa com a vida de todos. Exatamente como foi seu avô paterno, Benedito Antonio da Silva.”28
A imutabilidade como resistência
“Bendito sejais ó povo tranquilo”29, com “gostosura mesmo de vida, a deles!”30, porque tem “profusão de ternura! Exagero de felicidade!”31, com a “caseirice casulosa, agasalhadora, por graça de Deus!”32 (Não saio do quilombo, não), “ô vida cheia! Miuçalhas tão boas, tão!”33, “com sabiá cantando no cambucazeiro, passarinhada madrugadeira dando bom-dia, enxameando as franças em matinal azáfama, folgando floreado nas fruteiras em festa, à roda das janelas banhadas nas tonalidades loiras e tenras da aurora”34. Povo festivo, porque diz assim: “Sofrimento, detém-se! Volta amanhã! Daqui há duas horas que seja! Tem piedade, espera! Asseguro-te, que se avanças mais um passo meu coração ficará imóvel. Espera!”35, Daí porque uma certa imutabilidade como resistência, talvez isso a garantir as belezas naturais que ainda encantam moradores e visitantes: “beleza que não comporta relato e que quem viu, de esquecer não há-de”36. Entende-se também o tom categórico de Ditinho Joana, quando diz: “não posso deixar o Quilombo!”37
Este dado pode explicar assim São Bento do Sapucaí, “onde vive um povo que não muda de vida”38, numa cidade incrustrada nas alturas azuis da Mantiqueira, “a que mora em raiz de montanha, que exprimem imutabilidade”39, mas que conserva dádivas dos tempos que por aqui passaram os primeiros bandeirantes: “o sabiá dando concerto na bananeira”40, em que “a noite, com seus segredos, sob as espelhadas estrelas, era linda, especial”.41
Jóia da Mantiqueira que precisa ainda ser lapidada, para não continuar apenas uma terra de promissão. Com mãos que trabalham, com operosidade da esperança, “haverá o eterno germinar dos meios daquilo que é princípio e é amado campo”. 42
O Quilombo como realidade projetiva e propositiva
A partir do bairro do Quilombo, com a arte de Ditinho Joana, é possível vislumbrar possibilidades de ações futuras para otimizar o passado idealizado, em potencial turístico, através de uma arte comunitária, envolvendo os moradores na produção do rico artesanato local, as músicas e culinárias, os causos e performances que não apenas resgatam, mas atualizam o tempo em que se formou o modo muito específico de ser do povo, com uma brasilidade cuja identidade não quer ser nostálgica, mas presença viva a resistir a massificação e o individualismo pós-moderno. Daí uma realidade projetiva e propositiva.
Daí que o desafio do projeto de Quilombo que Ditinho Joana representa é, sem dúvida, o que há de mais promissor para o verdadeiro desenvolvimento do potencial cultural e turístico de São Bento do Sapucaí.
“Sob a perspectiva de um bairro onde perduram as tradições de um passado camponês ou caipira, o Quilombo deve ser lido pelos turistas que o visitam como o lugar onde sobrevivem aspectos da religiosidade caipira, do hábito caipira de se contar, ao pé do fogão, causos de assombração. Onde sobrevivem também uma certa culinária caipira e o costume do trabalho coletivo. Aspectos próprios de uma categoria social que se formou e se consolidou ao mesmo tempo que o Brasil se consolidava como nação e que, por isso, também estabelece uma continuidade entre o passado e o presente”.43
Neste sentido, cultura popular e turismo são aliados importantes para o desenvolvimento vital de São Bento do Sapucaí, e a arte de Ditinho Joana aponta nesta direção, “por conhecer o caminho firme”44, sendo, portanto, indicadora do quanto ele sintetiza a tradição do povo sambentista, em sua melhor expressão. Tradição esta que Ditinho dedica a sua vida para transmiti-la, porque sabe que é deste húmus que a comunidade há de sempre encontrar a vitalidade e o vigor para que ela não esteja aquém de suas necessidades, e alcance seu pleno desenvolvimento e vocação. Por isso, “na pequena escola do bairro, Ditinho Joana reúne os alunos para ensinar algumas técnicas de sua arte e lembrar costumes do lugar. 'É preciso manter nossas tradições', diz o artista”.45
O povo pode mais quando unido
“Em torno da figura de Ditinho Joana se constitui a idéia do Quilombo como uma 'comunidade'”. O Jornal ABC salienta que
“há uma sociedade consolidada no regime de mutirão, o que é exemplo para muito brasileiro que espera que o governo lhe dê tudo, esquecendo-se que é a sociedade que o ampara e não a autoridade (...) Faça turismo em São Bento do Sapucaí e conheça a sociedade exemplar do bairro do Quilombo, adquirindo seu artesanato, estimulando-os, aos seus habitantes, a prosseguir em sua vida tão simples, porém tão digna de imitação”46
No mutirão encontramos a força do povo, que descobre que pode muito mais que o clientelismo político, e que deve a sua sobrevivência como povo, a despeito da demagogia dos que têm postos no poder público; que agem, muitas vezes, por interesses imediatistas, sem percepção das verdadeiras demandas da comunidade. Porque muitos políticos locais não têm representatividade, nem comprometimento; e os partidos são agremiações oportunistas que só se coligam em épocas de eleição, para perpetuar esquemas que vem desde a República Velha: compra de votos, promessas vãs, quebras-galhos paliativos, e o jogo areia-movediça da retórica (“o palavrório pasmoso”47), em meio a tanta inveja e mesquinharia. “Mas Deus havia de castigar aquilo tudo. Não estava direito, não estava não!”48
“Ixe, vixe! Que dificuldade de vida!”49 O povo é muito mais: o jeito é se organizar e resistir às tantas enganações, ao imposto que aperta, e não retorna em benefícios, e é um tal descaso, uma tal chateação, que é melhor mesmo o mutirão, onde a mão amiga dá suporte concreto, há quem se junta para obrar alguma solução, e fazer acontecer pelo barro amassado junto o que não vem ou o que custa vir pelas autoridades competentes. Mesmo assim é São Bento do Sapucaí “cidade profundamente politizada”50, interessada nas coisas, das miudezas da vida de cada um, aos mais vastos sonhos.
A política em São Bento é difícil, porque entranhada em resquícios feudais, em que ainda tem vigência a cultura coronelista e todas as manhices e perversidades de um sistema que não tem nada de democrático, e por isso fossiliza tanta coisa, deixa mesmo embolorar papéis nas gavetas, daquilo que o povo simples mas muito intuitivo traz como proposta, e que a falta da larguesa e até generosidade de visão das coisas, faz emperrar, abortar, deixando os melhores talentos soltos, evasivos, excluídos, sem saber ao que se ater; até irem para outras paragens tentar se acertar no mundão afora.
O tesouro que esta terra tem
Mas há os que ficam, e fincam o pé na terra sambentista, e arregaçam as mangas, mas de um jeito muito próprio de resistir e avançar, de palmilhar e tecer possibilidades, em meio a uma fixidez própria das montanhas, e a vista deslumbrante dos mais amplos horizontes. Dos que ficaram e se enraizaram e não se amesquinharam, mas subiram o monte e atravessaram a “noite escura”51 e, ainda hoje, sonham e trabalham por uma São Bento do Sapucaí mais de acordo com a sua promissão, está o mestre Ditinho Joana, visionário, “alguém que tem uma visão elevada, alguém que olha com o coração”52: sabe do tesouro que esta terra tem, mas não quer deixá-lo enterrado, mas à vista e para usufruto de todos. Por isso sua arte se ancora na tradição, mas tem o olhar para o futuro, porque “quem sempre vence é o porvir”53; e assim espera superar o desafio maior do Município: preservar-se da corrosão pós-moderna, mas não fossilizar-se no imutabilismo de um conservadorismo absolutista e colonial. Pois uma coisa é conservar o ipê branco que a cada primavera deve florir e perfumar a praça, e outra é não oferecer meios para esta belíssima floração.
É assim, numa imutabilidade resistente, mas também num afã de festejo, que o povo se junta e mantém viva a tradição de não esmorecer e dar conta do que precisa, quando lhe falta o apoio do poder público. E mesmo assim os políticos sobrevivem do clientelismo e do populismo mais ignominioso. E então Ditinho Joana desponta, como guru, a acalmar a sua gente e a buscar suprir as deficiências das demandas não atendidas. E dá ânimo ao povo, para superar os dissabores do dia-a-dia.
“No bairro do Quilombo, seus membros têm por hábito construir ou reformar, em regime de mutirão, as casas dos moradores em dificuldades econômicas; a partir de doações feitas por outros moradores do bairro e da cidade, bem como pelo comércio local.
De forma coletiva é organizada também a festa da padroeira do bairro, Nossa Senhora da Conceição, no dia oito de dezembro. Capitaneada por um festeiro, a festa depende das doações de prendas e alimentos que são utilizadas em bingos e leilões durante o período da novena que a antecede, e do trabalho de vários colaboradores que dirigem as rezas, comandam as rodadas de bingo,limpam a igreja e enfeitam os andores para a procissão.
De forma coletiva se fazem as rezas semanais do terço, as brincadeiras das crianças na praça, as rodas de conversas das mulheres na beira da rua e dos homens no bar ao lado da capela e as trocas de pequenos bens, serviços e gentilezas que sustentam as relações entre os vizinhos. Também de forma conjunta os artesãos em atividade organizam suas exposições em feriados e finais de semana.”54
É assim que se afirmou a liderança de Ditinho Joana, porque a sua arte está na contramão do individualismo pragmático, daí porque Ditinho não se enriqueceu com o que faz, continuando sendo um homem do povo, não havendo distância econômica dele e da comunidade pobre que se identifica com ele, como alguém que realmente pastoreia as suas necessidades e reivindica as suas demandas. Nesse sentido, não houve em Ditinho o processo do artista que veio de baixo, ascendeu socialmente, e perdeu contato com o povo. Nada disso. O notável é que ele ascendeu, sendo reconhecido como artista de escol, por quem entende de arte, mas continua envolvido e comprometido com o seu povo. E mais ainda como alguém que o povo confia, porque ele é realmente fiel à sua origem, ao seu talento, à sua missão e à sua gente.
“O bairro do Quilombo, como vimos, é composto por uma população pobre, boa parte dela formada por pequenos agricultores, muitos deles sem terra própria, além de trabalhadores da construção civil ou da prefeitura local. Morador no terreno da Santa, Ditinho conseguiu recomprar uma pequena parte das terras que seus avós possuíram um dia no Quilombo e que foram sendo desmembradas entre os herdeiros e vendidas. Entretanto não trabalha nelas. É funcionário da prefeitura. Exceto por uma reforma em sua varanda, utilizada para receber os visitantes e expor seus trabalhos e os de outros moradores, Ditinho não ostenta nenhum sinal material de distinção dos demais moradores, quer em sua apresentação pessoal, quer através da posse de qualquer bem, quer através da adoção de hábitos diferenciados. Desta forma não constrói uma barreira econômica que possa distingui-lo dos demais vizinhos, ainda que seja reconhecido como uma figura proeminente. Além disso, atualiza certos rituais de camaradagem e cortesia que o mantém em contato constante com seus vizinhos: está presente em velórios e casamentos, visita vizinhos doentes, troca um dedo de prosa na rua quando chega do trabalho. Acresce-se a isso o fato de que
Ditinho teceu como os moradores locais, uma rede de parentesco e de compadrio.”55
É esta familiaridade, proximidade física e afetiva que se torna o componente fundamental que sedimenta a liderança de Ditinho Joana, como artista e líder comunitário.
Humanidade feita de dor e alegria
Enfim, é comovente um relato que exprime tão bem a humanidade de Ditinho Joana, desta familiaridade que marca o seu estilo e que ele faz de tudo para não perder, e com isso muito mais que sobreviver, mas viver a vida de comunidade que o Quilombo pode reatualizar, mesmo na atual geração e quem sabe nas próximas:
“A figura do avô Benedito é cercada de histórias e lembranças, como as das balinhas, único e cobiçado presente que os netos recebiam no Natal, já que em casa não havia nada de especial, a nãos ser o presépio de argila enfeitado com maracujás. 'Ele era um homem muito respeitado na comunidade. Dizem que tinha uma energia tão boa e tão forte que bastava sua presença para apaziguar uma briga. Comigo também é assim. Quando tem briga de casal, ou se alguém está sofrendo, as pessoas me chamam. Muitas vezes eu não digo nada. Fico perto da pessoa, escuto ela, ela fica aliviada, parece que melhora. Acho que essa qualidade herdei do meu avô, como o gosto para contar histórias'. A morte do avô acabou se tornando uma história impressionante. 'Ele nem chegou a adoecer. Acordou certo dia dizendo que não estava bem. Pediu pra vó: 'Chama os filhos e as crianças na roça porque eu vou embora. Depois, chama os vizinhos para eu despedir'. Ela obedeceu, mesmo sem acreditar. Os filhos e os netos fizeram fila. Ele abençoava e dava conselho a cada um. Então, chamou a vó, pediu desculpas de alguma vez que não foi bom com ela e disse: 'Vou dar um beijo no crucifixo de massa e até o dia do Juízo. Se Deus quiser, vamos nos encontrar, procura viver bem até lá'. Uma das vizinhas ainda tentou conversar: 'Seu Benedito, o senhor é tão religioso, porque não pede a Deus para viver mais?' E ele respondeu: 'Laranja quando está madura tem que cair. Chegou a minha hora, eu tenho que ir'. Recostou na cama e pouco depois estava morto', conta Ditinho, com os olhos molhados”.56
Homem da vida e da alegria, mas temperado no sofrimento e na dor. Ditinho perdeu a primeira esposa, Maria Joaquina, durante o parto. Seu pai foi vítima de um acidente com “boi bravo”. Enquanto estava lavrando, no campo, uma vaca desembestou e o atacou, derrubando-o no chão, e enfiando-lhe o chifre no pescoço, atingindo inclusive a cabeça. Sendo socorrido na Santa Casa, ficou depois exatamente um ano em casa, período em que Ditinho Joana ficou incumbido de lhe fazer companhia e contar-lhe estórias, para confortá-lo até o instante da sua morte. Conta que ele era um homem muito forte, “um dos mais fortes daqui”, mas naquele ano ficou fragilizado. Experiências assim fizeram Ditinho valorizar ainda mais a vida, especialmente nestas horas, daí o amor pelas crianças, pelos idosos, por aqueles que mais necessitam muitas vezes de uma presença, e no caso dele, uma presença sempre luminosa. Pois é assim que se afirma a solidariedade, que dá sentido à vida e à realização pessoal e comunitária, e pelo qual a vida vale a pena ser vivida.
É por isso que Ditinho Joana alia arte e religiosidade, pois se é religioso quando se sente vinculado à sua realidade circundante, unido a objetivos de bem comum, ligado a sua comunidade, na dor e na alegria, caminhando junto como em procissão, trabalhando junto em mutirão, para esplender a beleza da vida.
Hermes Rodrigues Nery é jornalista, foi vereador e Presidente da Câmara Municipal de São Bento do Sapucaí (biênio 2009-2010) e atualmente é Chefe de Gabinete do Executivo Municipal.
Bibliografia:
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- Maria Ester Pereira Fortes, Arte e Festa no Quilombo: Processo de construção turística de um bairro rural da Mantiqueira – Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas sob a orientação da Prof.ª Bela Feldman Bianco (http://cutter.unicamp.br/document/?code=vtls000428123)
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